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As palavras e os fatos numa democracia (por Roberto Brant)

O escritor americano James Carroll escreveu que a linguagem está para os homens como a água para os peixes: “Estamos imersos em uma linguagem. Pensamos em uma linguagem. Vivemos em uma linguagem.” Se concordarmos com isto devemos necessariamente concordar que para preservar a vida humana é preciso preservar a integridade da linguagem. A corrupção do sentido das palavras coloca em risco a convivência social e o próprio progresso humano. Hoje, quando com razão grande parte da humanidade se mobiliza para proteger o meio ambiente, cuja deterioração põe em risco nossa vida biológica, deveria haver idêntica mobilização para preservar as palavras, cuja degradação põe em risco nossa vida moral.

A frequente ocorrência de transtornos climáticos está colaborando para a percepção generalizada de que algo muito errado está ocorrendo com o nosso planeta e mais cedo ou mais tarde as pessoas e os governos vão concordar com os sacrifícios necessários para impedir os piores cenários. As deformações da linguagem, que tantos danos vem causando à democracia e à convivência humana, não são visíveis o suficiente para formar a mesma percepção de perigo.

As palavras deveriam corresponder com clareza aos fatos e facilitar a concordância entre as pessoas. A manipulação da linguagem não é um fenômeno atual, evidentemente. Ela certamente esteve presente desde as mais longínquas origens da vida social. O que é novo é a amplitude que a manipulação pode alcançar com os meios modernos de comunicação e agora pela infinidade das redes sociais, que criaram o caos informacional.

Hoje as palavras perderam completamente a sua sacralidade original e podem ter qualquer significado, dependendo apenas do poder informacional do agente interessado. E surgiram agora também os fatos alternativos, os não-fatos que buscam impor-se como realidade.

A política sempre foi uma área de risco para a linguagem, porque a palavra é a principal arma dos políticos e eles sempre a usaram com grande liberdade. Mas na maior parte da história as palavras eram breves como vento e passavam sem muitos rastros. Hoje as mesmas palavras têm um alcance ilimitado, graças aos meios eletrônicos, e ainda ficam registradas para sempre. Uma falsidade ou uma mentira adquiriram um poder germinativo que nunca tiveram e estão envenenando as relações entre as pessoas e o funcionamento dos governos democráticos, nos quais a comunicação é o elemento essencial.

Este é um problema particular das democracias, onde predomina um multiverso informacional e é livre a criação e a circulação de ideias e informações, ao contrário dos sistemas autoritários onde o Estado controla a fonte e o fluxo de informações e ainda detém o monopólio da manipulação da linguagem. É por isto que as democracias são tão instáveis e polarizadas, enquanto os totalitarismos parecem, pelo menos de longe, plácidas paisagens.

Seria, no entanto, uma injustiça debitar somente à internet o controle e o uso político da linguagem. A grande mídia aderiu de corpo e alma ao emprego dos dialetos políticos no lugar da linguagem com sentido universal. Um veterano jornalista americano James Bennet, ex-editor de opinião do New York Times e atualmente editor da revista Economist, escreveu esta semana que a grande imprensa agora prefere servir às suas audiências partidarizadas a versão da realidade que elas preferem, renunciando à missão do jornalismo que seria ajudar as pessoas a compreender o mundo, para mudá-lo e melhorá-lo.

Guerras culturais e polarização política estão partindo nosso país em dois. Num país como o nosso o verdadeiro problema é o crescimento econômico e o fim da pobreza. Quem procurar por esta agenda no debate político ou nos meios de comunicação, vai procurar em vão. Os conflitos e as divisões se multiplicam porque não vemos mais os mesmos fatos nem falamos mais a mesma língua.

Nossa democracia só estará protegida de fato quando encontrarmos um terreno em que todos os lados possam compartilhar os mesmos fatos e possam chamá-los pelo mesmo nome.

 

Roberto Brant, ex-ministro da Previdência Social do governo Fernando Henrique Cardoso

 

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