O Presidente da República deu, na segunda-feira, uma inédita conferência de imprensa. Numa sala de reuniões do Palácio de Belém, perante uma parede branca e nua, sem qualquer símbolo do órgão de soberania que ocupa, mas falando na qualidade de primeira figura da hierarquia do Estado, Marcelo Rebelo de Sousa veio, finalmente, dar resposta a uma polêmica levantada por notícias da CNN, a 3 de Novembro.
A notícia revelava que duas crianças gémeas luso-brasileira, residentes em São Paulo, tinham sido tratadas, no Hospital de Santa Maria, em Lisboa, em 2019, com medicação no valor de quatro milhões de euros, para retardar os efeitos da atrofia muscula espinal de que padecem. Origem da polémica: Marcelo Rebelo de Sousa teria interferido no processo, a favor das duas crianças, depois de tal lhe ter sido solicitado pelo seu filho, Nuno Rebelo de Sousa.
Ora, o Presidente da República veio, na segunda-feira, dar explicações sobre o assunto. Negando ter interferido pessoalmente, revelou que foi contactado pelo filho, por email, a expor o caso e a solicitar ajuda. O seguimento do caso envolveu o chefe da Casa Civil e a consultora para Assuntos Sociais, que chegou a contactar o director do Hospital de Santa Maria. Marcelo Rebelo de Sousa revelou também que o seu filho falou com o chefe da Casa Civil e com a consultora. Perante a impossibilidade de o hospital dar resposta imediata ao caso, o assunto foi encaminhado para o Governo, através da figura do chefe de gabinete do primeiro-ministro que era, então, Francisco André, e para a Secretaria de Estado das Comunidades Portuguesa, de que era titular Berta Nunes.
Na quarta-feira, o primeiro-ministro, António Costa, confirmou que tinha recebido a documentação da Presidência e que a reencaminhou para o Ministério da Saúde: “Relativamente ao que diz respeito ao meu gabinete, nós já confirmámos que recebemos uma comunicação da Casa Civil da Presidência da República, entre muitas outras que recebemos, e fazemos o que habitualmente fazemos com esse expediente: há um reencaminhamento para os ministérios competentes em razão da matéria. Ponto final.” No mesmo dia, foi noticiado que a primeira consulta em que as duas crianças gémeas foram observadas no Hospital de Santa Maria foi marcada por solicitação do então secretário de Estado da Saúde, António Lacerda Sales. E, na quinta-feira, a CNN avança com a informação de que António Lacerda Sales se reuniu com Nuno Rebelo de Sousa, no Ministério da Saúde.
Na segunda-feira, Marcelo Rebelo de Sousa revelou ainda que a troca de emails, feita através do servidor da Presidência, entre 21 de Outubro e 31 de Outubro de 2019, foi recuperada e enviada à Procuradoria-Geral da República, que, em Novembro, abriu um inquérito criminal ao caso, através do Departamento de Investigação e Acção Penal (DCIAP) de Lisboa. Sabe-se também, por notícia da CNN, que as duas crianças viviam em São Paulo e obtiveram nacionalidade portuguesa em 14 dias.
Além das explicações, argumentou o Presidente da República que o caso não justifica a sua demissão: “Ai certamente. Precisamente fica claro que o Presidente da República, perante uma pretensão de um cidadão como qualquer outro, dá um despacho mais neutral como deu em n casos, respeita a consultora. Não há uma intervenção do Presidente, pelo facto de ser filho ou não.” E que agiu como age sempre.
Acompanho a vida política, como jornalista há 34 anos. Sei que os presidentes da República, os primeiros-ministros e os ministros são alvo de pedidos e de queixas dos cidadãos, por correspondência ou presencialmente, quando têm iniciativas na rua. E sei também que é um procedimento perfeitamente normal os serviços da Presidência encaminharem esses processos para o governo e este analisar os casos e procurar resolver problemas reais da população. Agora, há dúvidas que se colocam, na minha opinião, em relação a este caso.
O filho de um Presidente da República é um cidadão como qualquer outro? Não, não é. O filho do Presidente da República não é um cidadão qualquer. É filho do Presidente da República. Deve saber ter distância, formal e institucional, do primeiro órgão de soberania. Deve saber ter contenção e não utilizar nunca a proximidade familiar, para obtenção de um favor e intervenção na esfera do funcionamento do Estado e dos serviços públicos. Mais: será normal, será sensato, que o filho, Nuno Rebelo de Sousa, se relacione com o pai, Marcelo Rebelo de Sousa, através do servidor de email da Presidência da República? Não têm telemóveis? Já agora, é normal ser uma consultora para os Assuntos Sociais a telefonar para o director de um hospital? Por que razão o assunto não foi logo encaminhado para o Governo?
Estas explicações de Marcelo Rebelo de Sousa surgiram no início da semana política em que o Presidente da República aceitou oficialmente, na quinta-feira à noite, o pedido de demissão do primeiro-ministro, António Costa, que a pediu a 7 de Novembro, na sequência de terem sido feitas buscas, na Residência Oficial de São Bento, na sala ocupada pelo seu chefe de gabinete, Vítor Escária, detido nesse dia como suspeito da investigação do DCIAP de Lisboa designada Operação Influencer. Esse inquérito investiga tráfico de influências, em que são arguidos também o ex-ministro das Infra-Estruturas João Galamba e Diogo Lacerda Machado, amigo do primeiro-ministro e advogado consultor e empresas.
O pedido de demissão foi anunciado ao princípio da tarde do mesmo dia 7 de Novembro, depois de, ao final da manhã, ter sido emitido um comunicado do gabinete de imprensa da PGR que revelava que António Costa estava a ser investigado: “No decurso das investigações surgiu, além do mais, o conhecimento da invocação por suspeitos do nome e da autoridade do primeiro-ministro e da sua intervenção para desbloquear procedimentos no contexto supra-referido. Tais referências serão autonomamente analisadas no âmbito de inquérito instaurado no Supremo Tribunal de Justiça, por ser esse o foro competente.”
Portugal continua a ser o país da cunha. Há uma mentalidade que o continua a permitir. É evidente que uma cunha não é tráfico de influências, nem nenhum dos dois conceitos significam corrupção. Mas o facto é que, neste momento, a primeira e a terceira figuras da hierarquia do Estado português têm o seu nome envolvido em investigações por parte do Ministério Público. Não é certo, nem provado que quer o Presidente da República, quer o primeiro-ministro, tenham tido comportamentos ilegais, mas no tribunal da opinião pública e na barra dos cafés são já condenados. Isto, quando o país vai ter eleições legislativas antecipadas a 10 de Março.
Era importante que os dirigentes partidários, que prezam a democracia, ponderassem sobre a situação em que o regime democrático português está colocado. Não só em relação à atitude que vão assumir no discurso de campanha eleitoral, mas também sobre a profunda reflexão que a próxima Assembleia da República terá de fazer sobre os comportamentos e as regras da investigação criminal em Portugal e sobre a atitude que os políticos e ocupantes de cargos institucionais devem ter do ponto de vista ético.
O clima que se vive em Portugal, eivado de desconfiança em relação aos políticos e de desprestígio públicos destes, é imensamente perigoso para a saúde do regime democrático. Este tipo de situações cria o pano de fundo ideal para os populismos, quais reencarnados Savonarolas de pacotilha, agarrarem no justicialismo moralista e gritarem que chegou a sua hora de “salvação” do país. Rejubilarem e proclamarem que “os políticos são todos iguais”, que são “todos corruptos”, que é preciso combater a “casta que domina o poder”. E prosseguirem o ataque à democracia.
(Transcrito do PÚBLICO)