São Paulo — Uma decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que restringiu a atuação do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) deu início a uma onda de suspensões e anulações de provas de lavagem de dinheiro contra investigados no Poder Judiciário.
A decisão do STJ, tomada em agosto, é sobre uma investigação no Pará sobre supostos crimes de sonegação e lavagem de R$ 600 milhões atribuídos à cervejaria Cerpa. Por lá, a Polícia Civil usou os canais de comunicação oficiais para pedir informações ao Coaf.
A Sexta Turma do STJ decidiu anular os relatórios por não terem sido obtidos por meio de autorização do juiz da investigação. O efeito cascata se dá pelo peso da decisão de uma Corte Superior, que pode ser usada para argumentar em outros Tribunais para barrar investigações que adotem as mesmas práticas.
O Coaf mantém um canal de comunicação próprio e sigiloso com Polícias e Ministérios Públicos de todo o País. O órgão pode produzir relatórios espontaneamente quando alertado por bancos sobre operações suspeitas e atípicas, como aquelas que envolvem valores vultosos em dinheiro vivo ou mesmo para pessoas que façam transações muito acima de seus rendimentos.
É comum que investigadores usem este mesmo canal para pedir relatórios ao Coaf sobre operações suspeitas de determinados investigados em um inquérito. São essas as investigações que começaram a cair após a decisão do STJ.
Investigação suspensa
Em um dos casos obtidos pelo Metrópoles, o Grupo de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) do Ministério Público de São Paulo mira um suposto caso de sonegação e lavagem de dinheiro cujas cifras envolvidas ultrapassam R$ 400 milhões.
Trata-se de uma investigação sobre sócios da Copape, uma produtora de combustíveis que teve crescimento meteórico nos últimos anos, quando saltou do 15º lugar entre as maiores distribuidoras de combustíveis do país e saltou para a vice-liderança deste ranking. As investigações suspeitam que a sonegação de impostos alavancou as atividades da empresa.
Relatórios de Coaf apontaram operações milionárias entre os sócios e uma rede de distribuição de postos de gasolina que levantaram a suspeita sobre lavagem de dinheiro. Ao Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), uma das investigadas pediu a anulação de provas com base no relatório.
A defesa dela pediu a anulação citando a decisão do STJ. “O manifesto constrangimento ilegal a que está submetida a paciente decorre da existência de procedimento investigatório criminal instaurado a partir de relatório de inteligência financeira obtido de maneira ilegal pelo órgão acusatório”, afirmam os advogados Pierpaolo Bottini e Igor Tamasauskas.
O desembargador Ivo Almeida acolheu o pedido e suspendeu as investigações. O TJSP ainda deve julgar o mérito do pedido, para anular as investigações.
Provas anuladas
Em outra investigação sobre crimes tributários e organização criminosa conduzida pelo Ministério Público do Rio de Janeiro (MPRJ) envolvendo a empresa de importação e exportação SJW Comercial do Brasil, o ministro do Superior Tribunal de Justiça Messod Azulay acolheu um pedido de um investigado.
Azulay decidiu pela “ilicitude das provas consistentes nos Relatórios de Inteligência Financeira obtidos diretamente pelo Ministério Público junto ao COAF, conforme fundamentação supra, determinando que o juízo da origem desentranhe dos autos as citadas provas”.
“Vale dizer, se a obtenção de dados sigilosos ora questionada feriu direito fundamental, não se pode conceber que o Poder Judiciário chancele tal ilegalidade deferindo a solicitação desses mesmos dados posteriormente, apenas para convalidar a ilicitude praticada pelo órgão ministerial”, escreveu o ministro.
A SJW não é muito conhecida, mas chegou a aparecer no ranking de maiores devedoras do Estado do Rio de Janeiro, com dívidas de mais de R$ 200 milhões em tributos. O relatório de Coaf, segundo apurou o Metrópoles, diz respeito a suspeitas de lavagem relacionada à sonegação fiscal.
Covid e corrupção
O juiz federal Massimo Palazzolo, da 4ª Vara Criminal Federal de São Paulo, declarou a ilicitude de relatórios de Coaf em uma investigação que nasceu a partir da Operação Sangria, deflagrada em 2020, para investigar corrupção e lavagem de dinheiro na compra de respiradores pelo governo do Amazonas. O governador do Estado, Wilson Lima (União Brasil), acabou denunciado pela PGR nesta investigação.
Parte do caso foi desmembrada para São Paulo por não ter conexão direta com a investigação. Ao cumprir mandados de busca e apreensão na casa da empresária Renata Mansur, sócia da empresa que fornecia os respiradores, os investigadores encontraram seu marido, Alexandre, em uma loja de carros de luxo.
Desconfiaram de lavagem de dinheiro. Como não havia aparente elo com os contratos no Amazonas, o caso foi enviado a São Paulo. Neste caso, houve troca de informações com o Coaf. O juiz citou a decisão do STJ ao anular o relatório.
“Como cediço, o compartilhamento de dados sigilosos entre a Receita Federal e o MP é possível sempre que houver a hipótese de atuação criminosa, contudo, segundo entendimento do Superior Tribunal de Justiça, é necessário autorização judicial para tanto”, disse.
“Instabilidade jurídica”
Tamanho temor causou a decisão do Superior Tribunal de Justiça que abriu a porteira para essas decisões que o procurador-geral de Justiça de São Paulo, Mário Sarrubbo, ingressou com um pedido de amicus curiae – do latim, amigo da causa – para apoiar um recurso do Ministério Público do Pará contra a decisão que beneficiou a Cerpa.
Segundo Sarrubbo, decisões como a tomada pelo STJ “geram imediata instabilidade jurídica, com repercussão sobre todo o sistema de Justiça”. O chefe do MPSP afirma que a decisão do STJ também desrespeita um entendimento do próprio STF.
O julgamento da Superma Corte citado por Sarrubbo é de dezembro de 2019. Ministros decidiram que não há necessidade de autorização judicial para o compartilhamento de informações entre o Coaf e órgãos de investigação.
A decisão derrubou uma liminar do então presidente da Corte, Dias Toffoli, que havia atendido um pedido do advogado Frederick Wassef para suspender a investigação sobre rachadinhas atribuídas ao senador Flávio Bolsonaro (PL). À época, Toffoli não só acolheu o pleito como suspendeu todas as investigações do País com base em relatórios de inteligência.
Ministros divergem
Ministros do Supremo ainda divergem a respeito da possibilidade de pedir relatórios ao órgão. Toffoli, por exemplo, rechaça a ideia de relatórios por encomenda. Alexandre de Moraes chegou a expor em seu voto que estes documentos poderiam ser confeccionados de maneira espontânea ou a pedido de investigadores. No acórdão, no entanto, o STF não entrou neste mérito. Apenas decidiram que não era necessária autorização judicial para troca de informações entre investigadores e o Coaf.
Nas mãos de Zanin
O recurso do MP do Pará contra a decisão do STJ está nas mãos do ministro Cristiano Zanin. A Procuradoria-Geral da República se manifestou a favor do recurso para cassar a decisão do STJ.
A subprocuradora-geral Claudia Sampaio Marques afirmou que, no caso específico, que o Coaf se limitou a compartilhar dados de bancos que já estavam em seu banco de informações – aqueles com evidências de atipicidade ou crime.
Do 8/1 ao PCC
A decisão tem preocupado investigadores. Como mostrou a Folha de S. Paulo, até mesmo investigações sobre financiadores dos atos de 8 de janeiro que terminaram com a depredação de prédios do Congresso, do Palácio do Planalto e do Supremo Tribunal Federal pode ser atingida por ter sido abastecida com relatórios de inteligência financeira.
Ao Metrópoles, investigadores afirmam que há inquéritos grandes que podem entrar na fila das anulações. Em São Paulo, por exemplo, uma investigação sobre agiotagem, extorsão e lavagem de dinheiro que identificou R$ 110 milhões em operações ilícitas foi abastecida por relatórios de Coaf a pedido de investigadores.
Outra investigação sobre o PCC que identificou movimentações de R$ 100 milhões anuais pela cúpula da facção também tem relatórios de inteligência financeira enviados aos investigadores. Todas elas podem sofrer questionamentos com base no precedente.