Do sonho de vestir a farda para servir o país à decepção com uma força armada, ex-militares enfrentam uma guerra contra o Exército Brasileiro desde que foram demitidos depois de sofrerem acidentes de trabalho ou receberem diagnósticos de doenças.
O Metrópoles ouviu quatro ex-integrantes da tropa que serviram em unidades de Brasília (DF) e de Formosa (GO), entre 2007 e 2023.
Todos eles ingressaram no Exército na condição de militar temporário (leia mais abaixo). Hoje, três brigam na Justiça contra a instituição, porque foram licenciados — demitidos do serviço na corporação — durante o tratamento de problemas de saúde desencadeados pelas atividades nos quartéis ou devido a sequelas provocadas por acidentes de trabalho.
Os ex-integrantes do Exército também relatam não conseguir mais trabalho, seja por causa das dores físicas, pelo sofrimento psicológico vivido ou porque os empregadores não querem contratar alguém dispensado com atestado de incapacidade para o serviço militar.
Os três que acionaram a Justiça receberam decisões favoráveis, todas contra o licenciamento nessas condições. Porém, segundo os advogados de defesa dos entrevistados, o Exército tem descumprido as determinações judiciais, e os ex-militares não recebem mais remuneração nem têm acesso a tratamentos de saúde em hospitais vinculados às Forças Armadas.
Torção ao sair de viatura deixou sequelas
Pedro*, 31 anos, ficou com sequela permanente no joelho direito depois de torcê-lo ao desembarcar de um carro da corporação
Pedro*, 31 anos, ficou com sequela permanente no joelho direito depois de torcê-lo ao desembarcar de um carro da corporação. O acidente ocorreu em abril de 2012, um ano após ele ingressar no Exército. O então militar trabalhava como condutor de viaturas na unidade de Formosa.
Um extenso processo judicial de 933 páginas reúne dezenas de laudos e atestados médicos que comprovam as lesões em um dos ligamentos do joelho de Pedro, causadas pelo acidente de trabalho. Sete anos após o ocorrido, o ex-militar passou por cirurgia no joelho, mas continua a sentir dores. Ele ficou afastado das funções por orientação médica até 1º de setembro de 2016, quando acabou licenciado.
“Eu fui pego de surpresa. Para mim, enquanto não se resolvesse a situação, eu não poderia ser licenciado. Tive de recorrer à Justiça”, contou, em entrevista ao Metrópoles.
Assista:
Onze anos e três meses após o trauma físico, em julho de 2023, a 4ª Vara Federal Cível do Distrito Federal determinou a reforma de Pedro pelo Exército — o equivalente à aposentadoria nas carreiras civis —, com direito a salário integral e a todas as vantagens que ele teria se estivesse na ativa.
O juiz federal Itagiba Catta Preta Neto levou em conta um laudo pericial feito após a cirurgia de Pedro, que apontou “sequela anátomo-funcional em joelho direto do tipo permanente, parcial e incompleta, em grau moderado, para atividades laborais civis e incapacidade laborativa para o serviço militar”.
Antes da sentença que deu direito à reforma, Pedro havia conseguido uma decisão liminar, em dezembro de 2016, que determinou ao Exército a reintegração do ex-militar à corporação, na condição de adido, para que ele pudesse continuar o tratamento médico-hospitalar e receber o salário até que tivesse como voltar a trabalhar.
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No entanto, como Pedro teve a incapacidade permanente constatada, o juiz autorizou a reforma dele. Contudo, apesar das duas decisões judiciais favoráveis, o Exército não as cumpriu e, hoje, o ex-integrante da força armada depende da ajuda de parentes para sobreviver.
“Nessas horas, são os familiares que ajudam, né? Minha família e a de minha esposa dão suporte para passarmos por essa, mas é difícil”, lamentou Pedro, que é pai de uma menina de 5 anos e de um bebê de 2 meses.
Da fibromialgia à depressão
Além de sentir dores insuportáveis por todo o corpo, que, às vezes, impedem-no de levantar da cama, Alessandro de Oliveira Silva, 39 anos, tem depressão e chegou a tentar suicídio três vezes
Além de sentir dores insuportáveis por todo o corpo, que, às vezes, impedem-no de levantar da cama, Alessandro de Oliveira Silva, 39 anos, tem depressão e chegou a tentar suicídio três vezes. Licenciado do Exército em setembro de 2023 e pai de quatro filhos, ele não sabe como sustentar a família desde então. Esposa do ex-militar, Josilene Lopes da Silva, 37, é autônoma e não tem renda fixa.
Uma inspeção da instituição concluiu que Alessandro era incapaz definitivamente para o serviço militar, por “apresentar lesão, doença ou defeito físico incurável ou incompatível”, mas o considerou apto a trabalhar em outro lugar. Ele observou a contradição e acrescentou que ninguém vai contratá-lo em função dos problemas de saúde.
“Qualquer empresa onde eu entregar meu currículo me perguntará sobre meu histórico. Aí, ficará constatado que fui afastado por incapacidade, e nenhuma vai contratar”, desabafou.
Alessandro trabalhava no pelotão que consertava instalações de quartéis e casas de militares. Ele começou a sentir incômodos nas pernas em 2018, três anos após ingressar no Exército. À época, fez exames, mas só descobriu a causa depois: fibromialgia, uma síndrome que causa dor muscular generalizada.
Sem conseguir executar tarefas simples do dia a dia, o então militar investigou a fundo a situação de saúde e foi diagnosticado com hérnia de disco. Com a saúde física deteriorada, o quadro piorou, e Alessandro descobriu estar com depressão.
Assista:
Alessandro não receberá mais salário. Ele foi autorizado a continuar o tratamento de saúde no Hospital das Forças Armadas (HFA), em Brasília, mas a esposa dele se preocupa com o risco de eventuais acidentes ou outros problemas de saúde que as doenças diagnosticadas possam provocar.
“Ele tem acesso ao hospital, mas entre aspas. Ele tem fibiromalgia, hérnia de disco e depressão. Isso afetou a neurologia dele. Se ele cair aqui e quebrar a perna, não vai ter tratamento”, disse Josilene.
Queda em escada e entorse crônica
Quem também não conseguiu trabalho após a licença do Exército foi Maria*, 43 anos. Ela fazia ronda no Centro de Instrução de Guerra Eletrônica (Cige), em Brasília, quando rolou escada abaixo e sofreu uma lesão no tornozelo direito
Quem também não conseguiu trabalho após a licença do Exército foi Maria*, 43 anos. Ela fazia ronda no Centro de Instrução de Guerra Eletrônica (Cige), em Brasília, quando rolou escada abaixo e sofreu uma lesão no tornozelo direito. Desde então, a vida da ex-militar nunca mais foi a mesma.
O acidente de Maria ocorreu em 2015. Impossibilitada de colocar o pé no chão, ela recebeu indicação médica para ficar afastada do trabalho militar durante o tratamento.
Oito meses depois de sofrer a lesão, ela acabou licenciada da corporação, em julho de 2016, sem salário nem direito a tratamento nas unidades de saúde vinculadas às Forças Armadas.
Maria processou o Exército Brasileiro e, quatro meses depois, a 17ª Vara Federal do Distrito Federal expediu liminar para obrigar a instituição a reintegrá-la, na condição de adido. Nessa posição, ela teria como fazer tratamento médico e continuar a receber salário até a efetiva recuperação ou, se constatada invalidez, a reforma.
Seis anos e um mês depois, em dezembro de 2022, o Exército decidiu licenciá-la novamente, sob alegação de que as lesões no tornozelo não tinham ligação com a queda na escada das instalações militares.
Maria, então, ficou sem salário e sem acesso às fisioterapias. Ela acionou novamente a Justiça e apresentou laudos periciais que atestavam a relação entre a queda e as lesões sofridas em 2015.
Em um dos documentos juntados mais recentemente ao processo de 676 páginas, a ex-militar apontou descumprimento da decisão que determinou a reintegração dela ao Exército, pois a corporação havia feito o licenciamento unilateralmente e sem autorização judicial.
Outro laudo apresentado à Justiça mostrou que Maria teve, além da entorse crônica no tornozelo direito, discopatia cervical — que provoca dor e espasmos musculares — e fibromialgia.
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Maria detalhou se sentir injustiçada: “Eu fiz todo o processo seletivo [para entrar no Exército]. Foram cinco etapas, e passei pelas cinco. Depois, fiz curso de formação e, logo após, assumi meu cargo, que cumpri da maneira mais legal possível. Por ter me lesionado em acidente de serviço, cumprindo minha função, eles me jogaram no lixo desse jeito.”
Assista:
Ligamento rompido em curso de ingresso
José*, 31 anos, foi pego de surpresa com a notícia do licenciamento enquanto fazia tratamentos de saúde devido às lesões decorrentes das atividades militares
José*, 34 anos, foi pego de surpresa com a notícia do licenciamento enquanto fazia tratamentos de saúde devido às lesões decorrentes das atividades militares.
De calça, coturno e sem camisa, José corria entre 20 e 30 quilômetros em Formosa, durante o curso para ingressar no Exército por meio do alistamento obrigatório, em 2007.
O cabo sentiu um estalo no joelho esquerdo e passou a conviver com dores constantes, mas sempre recebia diagnóstico de tendinite, que poderia ser tratada de forma mais simples e sem afastamento do trabalho.
Só oito anos depois, em 2015, quando estava prestes a encerrar o período de permanência no Exército, ele descobriu ter rompido o ligamento do joelho, o que explicava as dores frequentes. Mas, mesmo com as lesões resultantes de atividades laborais, José acabou licenciado, sem salário nem acesso a hospitais militares.
“Então, começou a humilhação. Para eles, você serve só quando tem saúde. Eles falaram que, se eu achasse ter direito [a salário e tratamento], que procurasse a Justiça, porque não poderiam fazer nada por mim”, relatou.
José seguiu o conselho e acionou a Justiça. Em 2015, conseguiu uma liminar que determinou a reintegração dele na condição de adido, com recebimento de remuneração, além de direito a tratamento e assistência médica. Em 2018, uma sentença no processo, que conta com 807 páginas, confirmou a decisão anterior.
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Contudo, em junho de 2023, o Exército decidiu licenciá-lo mais uma vez. José não teve condições de manter o tratamento das lesões no joelho e, hoje, enfrenta problemas psicológicos em função do ocorrido.
No ano passado, ele teve um surto psicótico e precisou ficar internado. “Saí cedo de casa e comecei a andar em uma BR. Depois disso, não me lembro de mais nada, só que me acharam e fiquei internado. Quando entrei lá [no Exército], eu não tinha nada dessas coisas”, completou José.
Assista:
Atualmente, o homem que se tornou militar pelo desejo de vestir a farda do Exército e de servir a uma das instituições mais antigas e respeitadas do país sente vergonha de falar que trabalhou na corporação.
“Esse negócio [do licenciamento] abalou muito meu psicológico, porque, até então, eu era visto como um dos melhores cabos lá. Sempre cumpri todas as missões e obrigações. Hoje, sinto vergonha de falar que servi ao Exército”, enfatizou.
Ex-integrantes do Exército processam instituição pelo direito de acesso a hospitais militares e pelo recebimento de remuneração durante tratamento de saúde
Advogado dos ex-militares ouvidos pelo Metrópoles, Gregory Brito lembrou que os quatro entrevistados não conseguem mais ingressar no mercado de trabalho civil, por não serem considerados aptos nos exames admissionais em função dos problemas de saúde.
“Um pai, uma mãe, confia em entregar o filho para servir ao país. Ele não serve ao Exército, à Marinha ou à Aeronáutica. Ele serve ao país, à sociedade. [Os pais] entregam o filho saudável e recebem em casa um filho doente, incapacitado e sem nenhum direito”, ressaltou.
Tipos de ingresso
No Brasil, há duas portas de entrada para as Forças Armadas. É possível ingressar no Exército, na Marinha ou na Aeronáutica por meio de concurso público, o que garante vínculo vitalício.
A outra forma de trabalho é por contrato temporário. Esses militares prestam serviço obrigatório a partir dos 18 anos ou se tornam voluntários, após por um processo seletivo simplificado.
Os temporários ficam nas forças por um ano, prazo que pode ser prorrogado até oito vezes ou até completarem 45 anos de idade.
O que diz a lei
O Estatuto dos Militares estabelece o direito à assistência médico-hospitalar para servidores e dependentes.
Quando um militar é afastado temporariamente do serviço ativo por ser considerado incapaz após um ano de tratamento contínuo, ele pode continuar agregado à instituição como adido. Nesse caso, deve receber a mesma remuneração.
O Superior Tribunal de Justiça (STJ) entende que o militar poderá ser reformado se houver comprovação entre a doença diagnosticada e a prestação de atividades nas Forças Armadas.
Em 2018, o ministro Mauro Campbell Marques afirmou: “Nos casos em que não há nexo de causalidade entre a moléstia sofrida e a prestação do serviço militar, e o militar temporário não estável é considerado incapaz somente para as atividades próprias do Exército, é cabível a desincorporação”. O voto dele prevaleceu durante o julgamento que fixou a tese sobre o tema.
Até a mais recente atualização desta reportagem, o Exército não havia respondido aos questionamentos do Metrópoles. O espaço segue aberto para eventuais manifestações.
*Nomes fictícios a pedido dos entrevistados